quinta-feira, 13 de maio de 2010

Rifa-se um coração






Rifa-se um coração quase novo. Um coração idealista.

 Um coração como poucos. Um coração à moda antiga. 

 Um coração moleque que insiste em pregar peças no seu usuário.

Rifa-se um coração que na realidade está um pouco usado,

meio calejado, muito machucado e que teima em alimentar sonhos e,

cultivar ilusões.

Um pouco inconseqüente que nunca desiste de acreditar nas pessoas.

Um leviano e precipitado coração que acha que

Tim Maia estava certo quando escreveu...

"...não quero dinheiro, eu quero amor sincero, é isso que eu espero...".

Um idealista...  Um verdadeiro sonhador...



Rifa-se um coração que nunca aprende.

Que não endurece, e mantém sempre viva

a esperança de ser feliz, sendo simples e natural.

Um coração insensato que comanda o racional

sendo louco o suficiente para se apaixonar.

Um furioso suicida que vive procurando  relações e emoções verdadeiras.



Rifa-se um coração que insiste

em cometer sempre os mesmos erros.

Esse coração que erra, briga, se expõe.

Perde o juízo por completo

em nome de causas e paixões.

Sai do sério e, às vezes revê suas posições

arrependido de palavras e gestos.

Este coração tantas vezes incompreendido.

Tantas vezes provocado. Tantas vezes impulsivo.



Rifa-se este desequilibrado emocional que abre

sorrisos tão largos que quase dá pra engolir as orelhas,

mas que também arranca lágrimas e faz murchar o rosto.

Um coração para ser alugado, ou mesmo utilizado

por quem gosta de emoções fortes.

Um órgão abestado indicado apenas para

quem quer viver intensamente

contra indicado para os que apenas pretendem

passar pela vida matando o tempo,  defendendo-se das emoções.



Rifa-se um coração tão inocente

que se mostra sem armaduras

e deixa louco o seu usuário.

Um coração que quando parar de bater

ouvirá o seu usuário dizer

para São Pedro na hora da prestação de contas:

"O Senhor pode conferir.

Eu fiz tudo certo,

só errei quando coloquei sentimento.

Só fiz bobagens e me dei mal

quando ouvi este louco coração de criança

que insiste em não endurecer e,

se recusa a envelhecer"



Rifa-se um coração, ou mesmo troca-se por

outro que tenha um pouco mais de juízo.

Um órgão mais fiel ao seu usuário.

Um amigo do peito que não maltrate

tanto o ser que o abriga.

Um coração que não seja tão inconseqüente.



Rifa-se um coração cego, surdo e mudo,

mas que incomoda um bocado.

Um verdadeiro caçador de aventuras que ainda

não foi adotado, provavelmente, por se recusar

a cultivar ares selvagens ou racionais,

por não querer perder o estilo.

Oferece-se um coração vadio,

sem raça, sem pedigree.

Um simples coração humano.

Um impulsivo membro de comportamento

até meio ultrapassado.

Um modelo cheio de defeitos que,

mesmo estando fora do mercado,

faz questão de não se modernizar,

mas vez por outra,

constrange o corpo que o domina.



Um velho coração que convence

seu usuário a publicar seus segredos

e a ter a petulância de se aventurar como poeta.




Clarisse Lispector

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